Na era tóxica, o imperativo é gozar cada vez mais
A psicanalista Clotilde Leguil reflete sobre o “tóxico” como símbolo da era atual e defende o desejo como antídoto contra o excesso e a destrutividade.

A psicanalista Clotilde Leguil, em entrevista conduzida por Amador Fernández-Savater, oferece uma análise sobre o crescente mal-estar da sociedade contemporânea, explorando o conceito de “tóxico” como um sintoma da nossa época. Leguil, autora do livro “A Era do Tóxico”, investiga como esse termo, antes restrito a substâncias nocivas, agora permeia as relações humanas, caracterizando interações que se assemelham a um veneno.
Pasolini, antes de ser assassinado, alertou: “Todos estamos em perigo”. Inspirada por essa apreensão, Leguil argumenta que o perigo não reside apenas em ameaças externas, mas também na internalização de uma destrutividade que se manifesta a partir do nosso próprio interior.
O ensaio de Leguil examina o “tóxico” como um novo imperativo de gozo, uma compulsão por satisfação imediata e ilimitada, um mal do hiper, que se manifesta na hiperatividade, hiperestimulação e hipersexualização. A psicanalista propõe uma reflexão sobre a desertificação dos ecossistemas íntimo, relacional e planetário, defendendo uma ética do desejo como forma de resistência e estabelecimento de limites.
Leguil questiona a inversão do Supereu freudiano, onde a proibição é substituída por uma força que impulsiona a busca incessante por mais gozo, resultando em um “excesso” que aniquila o desejo. Ela explora a dialética entre o exterior e o interior na experiência tóxica, onde o outro, como uma flecha envenenada, fere e embriaga, proporcionando um prazer estranho que pode levar a um gozo destrutivo.
A pulsão, definida por Freud como uma força libidinal entre o somático e o psíquico, é vista como a resposta do corpo à angústia perante o desejo do outro, levando a uma exigência pulsional que o sujeito não consegue refrear. O “tóxico” evoca a dimensão da hýbris, do excesso, que provoca angústia e põe em risco a vida nos campos íntimo, ecológico e político.
A autora analisa como o discurso tóxico, ao exigir um forçamento pulsional, coloca o sujeito em perigo, envenenando-o com crenças e transgredindo fronteiras éticas. Ela questiona a toxicidade do poder, especialmente nos discursos da ultradireita, que promovem a rejeição ao diferente e a cegueira em relação aos limites, abolindo a verdade, a história e a ética.
Leguil destaca a importância de limitar o gozo, reconhecendo que essa não é uma questão racional, mas sim algo enraizado no corpo. Ela argumenta que a cura e a salvação também devem vir do corpo, desafiando o racionalismo progressista da esquerda, que muitas vezes negligencia a realidade pulsional.
A psicanalista critica as insuficiências do imperativo categórico de Kant, mostrando uma proximidade entre o dever moral kantiano e o imperativo do gozo sádico, onde algo do próprio desejo é sacrificado. Em contraposição, Leguil defende que a palavra, como phármakon, pode tanto envenenar quanto curar, proporcionando alívio e reconectando o sujeito com seu desejo e poder de agir.
Em sua análise, Clotilde Leguil enfatiza a distinção entre gozo e desejo, propondo que somente o desejo pode desintoxicar, funcionando como um antídoto contra a pulsão de morte. Ela conclui que a relação com o desejo não é alheia à civilização, e abrir caminho para o desejo é essencial para que a civilização seja desejável, defendendo a singularidade do sujeito, o valor do desejo e a necessidade do encontro com o “desejo do outro”.




