Insumos da floresta amazônica viram bebidas inovadoras com saberes ancestrais

Em Cuiabá, no bairro Boa Esperança, em meio ao canto dos pássaros, a historiadora Cristiana Vasconcelos transformou sua casa em um laboratório de experimentação gastronômica. Ali nasceu a Bakité Fermentadora de Biomas, uma iniciativa que combina pesquisa, gastronomia decolonial e experimentação sensorial, transformando frutas nativas e conhecimentos tradicionais em bebidas fermentadas e charcutaria vegana.
A equipe de reportagem foi recebida no local, onde o aroma frutado se misturava à presença de dornas de madeira. Cristiana preparava a cerveja, misturando o malte à água quente para extrair os açúcares e enzimas que definirão o sabor e corpo da bebida. Naquele dia, o ingrediente principal era o mel produzido por famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), simbolizando a integração entre agricultura familiar e inovação sustentável.
“Minha atividade é repleta de vivências. A charcutaria tradicional me ensinou que cada corte, tempo de cura e tempero escolhido são um convite para respeitar a história e transformá-la em legado. Inovar não é apagar o passado, mas aprender a dialogar com ele”, afirma Cristiana.
O nome Bakité é uma homenagem aos povos originários, derivado de “baquité”, um cesto usado por mulheres indígenas para transportar alimentos, crianças ou frutos da mata. Assim como o cesto, a marca simboliza cuidado, ancestralidade e força feminina.
Na Bakité, nada se perde, tudo se transforma. As sobras da produção das cervejas artesanais são reutilizadas na preparação de um pão de cerveja de fermentação natural. O tempo é um ingrediente essencial, revelando a paciência e o respeito aos ciclos que norteiam a filosofia do empreendimento. Entre ciência e tradição, a iniciativa se consolida como um laboratório da bioeconomia gastronômica, onde cada criação carrega o sabor da floresta e o sentido de um futuro sustentável.
Professora de História e pesquisadora da integração regional da América Latina pela Universidade de São Paulo (USP), Cristiana encontrou na gastronomia uma nova forma de contar histórias. Em 2018, fundou o Bar Secreto, inspirado nos bares clandestinos da Lei Seca nos Estados Unidos. Ali, entre amigos, música e receitas autorais, começou a germinar o projeto que daria origem à Bakité. Com a pandemia, as atividades do bar foram suspensas, mas há planos de retomá-lo de forma itinerante.
“Minha perspectiva sobre a produção desses alimentos é decolonial. Busco apresentar a comida de origem, a ancestralidade, tanto na perspectiva diaspórica africana, que é a origem da charcutaria, quanto nas bebidas fermentadas e destiladas, e nas cervejas decoloniais dos povos originários”, explica Cristiana.
Essa visão se traduz nas receitas da Bakité, que combinam saberes tradicionais e inovação técnica. Entre as criações, destacam-se cerveja preta com nó-de-cachorro e baunilha do Cerrado, cerveja de araçá-do-mato e semente de aroeira, e aguardente de manga e frutos nativos. As madeiras utilizadas na maturação, como louro-negro e cerejeira, da Amazônia, também são escolhidas por sua origem e simbologia. Os ingredientes base incluem babaçu, buriti, cagaita, baru, araticum, murici, mangaba, jenipapo e macaúba. O resultado são produtos únicos, que traduzem o território e fortalecem a bioeconomia de base florestal.
Cristiana herdou um caderno de receitas de sua mãe, de origem síria, sua primeira mestra na arte da fermentação e da cozinha criativa, que lhe ensinou a importância da paciência, da precisão e do respeito ao tempo dos alimentos. Hoje, Cristiana transmite esses ensinamentos à filha, Morena Lopes Sanches, química de formação e responsável pelo controle de qualidade e comercial da Bakité.
Em 2024, Morena representou a Bakité no Amazônia Bio Summit, feira de negócios com investidores nacionais e internacionais, realizada em Manaus. A experiência ampliou os horizontes da empresa e conectou o legado familiar a um ecossistema global de inovação e sustentabilidade.
Para Cristiana, fazer cerveja é um ato de empoderamento feminino, lembrando que, na Idade Média, as mulheres foram as primeiras a produzir cerveja. Inspirada por essa herança, ela está criando a Escola de Mulheres Cervejeiras, em parceria com a Associação de Moradores do Bairro Praeirinho, em Cuiabá. A primeira turma, prevista para 2026, terá 30 vagas destinadas a mulheres e será um espaço de formação técnica, sensorial e cultural. Entre as experiências práticas, está a produção da primeira cerveja de cajá-manga, de sabor cítrico e leve.
Outro projeto em construção é uma parceria com o Casarão das Artes, para gerar renda e oportunidades a mulheres de regiões periféricas de Cuiabá. A ideia é transformar o conhecimento sobre fermentação e gastronomia em uma ferramenta de emancipação.
Todo o trabalho da Bakité segue princípios de rastreabilidade socioambiental, garantindo que nenhum insumo esteja ligado a áreas degradadas ou ao trabalho escravo. Esse cuidado ético é parte fundamental da identidade da marca e do seu propósito.
O Sebrae tem apoiado a Bakité desde a modelagem inicial, investindo no registro de 105 patentes e impulsionando o crescimento da empresa.
Segundo o gerente de Inovação do Sebrae Mato Grosso, Lucas Moreira, o estado tem se destacado como polo de referência em sustentabilidade e inovação, com 50% do território pertencente ao bioma amazônico, ampliando tanto os desafios quanto às oportunidades para empreender de forma sustentável.
Lucas antecipa o lançamento do Inova Amazônia 2.0 e a criação do Hub Sebrae de Inovação, em Cuiabá, um espaço dedicado aos empreendedores de negócios de base sustentável.
O Sebrae também é um dos principais parceiros da AMZ Gin Tropical, do Pará, criada por Leandro Daher, que alcançou premiações internacionais com o gin feito com a flor de jambu e com a castanha do Pará.
Ainda no Pará, a Cervejaria Uriboca, de Bernardo Pereira e Jésica Leitão, também acumula medalhas com cervejas como a “azedinha de cupuaçu e cumaru” e a Jà Mè Vú.
A escolha de fornecedores é um dos processos mais importantes, e Bernardo aposta sempre nas cooperativas para comprar as polpas pasteurizadas de cupuaçu, de taperebá e de outras frutas utilizadas na produção das cervejas.
De Cuiabá a Belém, diferentes caminhos conduzem a um mesmo destino: o fortalecimento de uma nova economia que nasce do sabor e da floresta. Seja nas dornas da Bakité, nas destilarias da AMZ ou nos barris da Uriboca, ciência, ancestralidade e criatividade se misturam para transformar insumos nativos em bebidas que contam histórias.
Fonte: agenciasebrae.com.br

