Mulheres negras marcham por reparação e bem viver no brasil
Às vésperas da segunda Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, a cidade de Belém vivenciou tensões reveladoras sobre o Brasil em construção. A COP30, encontro global para definir compromissos climáticos, expôs desafios persistentes: o acesso limitado de territórios às negociações e a influência crescente de lobistas de combustíveis fósseis e interesses privados, que se sobrepõem à ciência e à sobrevivência coletiva.
A xenofobia contra amazônidas, manifesta em declarações preconceituosas, revelou padrões de racismo e sexismo arraigados na história brasileira. Essa atitude demonstra uma visão míope, que ainda considera a floresta e seus povos como obstáculos, em vez de reconhecê-los como a chave para solucionar a crise climática.
Apesar de alguns avanços nas negociações internacionais, as medidas ficaram aquém do necessário para enfrentar o colapso ambiental. A lição de Nego Bispo permanece atual: não basta “ecologizar” a economia sem descolonizar as relações. Sem enfrentar as hierarquias de raça, gênero e território, qualquer transição corre o risco de perpetuar injustiças sob novas formas.
Mulheres negras, quilombolas, ribeirinhas, indígenas e periféricas, que sustentam a vida cotidiana, continuaram, em grande parte, marginalizadas nos espaços onde o futuro estava sendo negociado. Paradoxalmente, foram esses grupos, historicamente excluídos das decisões, que impulsionaram as mudanças mais significativas durante a COP. Protestos diários em frente à Blue Zone forçaram governos a reagir, e denúncias sobre grilagem e invasões aceleraram a demarcação e homologação de terras indígenas, reforçando que a rua permanece o palco onde o impossível se torna urgente.
Os protestos em Belém transmitiram uma mensagem clara: a rua clama porque o poder político ainda não ouve. Essa falta de escuta persiste porque os espaços de poder continuam ocupados, em sua maioria, pelos mesmos corpos, interesses e visões de mundo que historicamente negligenciam mulheres, populações negras, indígenas e periféricas. A escuta real só acontecerá com representatividade efetiva nos espaços de decisão.
O Legislativo assume um papel central e, ao mesmo tempo, contraditório. Embora ainda marcado por desigualdades, tem se tornado a principal porta de entrada para grupos historicamente excluídos, especialmente mulheres negras, indígenas e periféricas que ocupam mandatos e desafiam a política tradicional. Frequentemente negligenciado nas discussões da COP, é no Parlamento que o Bem Viver pode transcender um horizonte simbólico e se tornar lei, programa, orçamento e proteção concreta. É ali que se definem prioridades de alocação de recursos e se abrem espaços institucionais de diálogo, como as audiências públicas.
No entanto, persiste uma distorção inaceitável: mulheres negras, que representam cerca de 28% da população brasileira, ocupam menos de 6% das cadeiras na Câmara dos Deputados. Como esperar políticas capazes de proteger a Vida sem garantir a presença de quem a sustenta nos centros de decisão?
A Marcha das Mulheres Negras oferece uma resposta: aquilombar-se, construindo redes de apoio, proteção e elaboração política, que mantiveram vivos territórios historicamente abandonados pelo Estado. O Brasil tem muito a aprender com essa pedagogia coletiva, mapeando experiências de resistência comunitária, fortalecendo programas de proteção a defensores de direitos humanos e produzindo dados consistentes para políticas públicas mais assertivas.
Ao se prepararem para marchar em Brasília, as mulheres negras deixam um recado claro: o Brasil não será próspero enquanto aceitar a morte como política pública. A Marcha e a COP revelaram diferentes faces de uma encruzilhada histórica. Ou continuamos produzindo desigualdade e destruição em nome de um progresso para poucos, ou escolhemos um caminho de cuidado, coletividade e Bem Viver. O avanço das demarcações após a pressão social durante a COP comprovou que a mobilização transforma a realidade. O crescimento de mandatos de mulheres comprometidas com o clima e com o cuidado também mostra que é possível mudar os rumos do futuro dentro da política institucional. Enquanto houver mulheres marchando, cuidando e legislando pelo que é essencial, a Vida seguirá encontrando caminhos, e o Bem Viver só deixará de ser promessa quando for assumido como projeto político, com mulheres negras no centro da decisão.

