Brasil entrega sua soberania digital a gigantes americanas?
O Brasil pode estar cometendo um erro estratégico ao confiar sua soberania digital a empresas de tecnologia dos Estados Unidos. O Serpro, empresa pública com a missão de proteger os dados do estado brasileiro, está desenvolvendo uma “Nuvem Soberana” em colaboração com gigantes como Amazon, Microsoft, Google e Oracle. Em vez de fortalecer a independência tecnológica do país, essa iniciativa pode aprofundar a dependência e dificultar a conquista da soberania digital.
João Francisco Cassino, em sua tese de doutorado de 2025, “Soberania Fatiada: Controle das Infraestruturas e Subordinação da Autoridade Pública no Mundo Digital”, explora em detalhes esse equívoco estratégico.
O projeto da “nuvem soberana” é considerado uma armadilha, um cavalo de Troia digital que concede aos Estados Unidos controle sobre o processamento e o armazenamento de dados de cidadãos brasileiros.
Alexandre Amorim, atual presidente do Serpro, não demonstrou envolvimento com a questão da soberania tecnológica, ao contrário de gestores anteriores. Sua gestão tem se caracterizado pela implementação de projetos prontos, adquiridos de fornecedores externos, sem controle público sobre as tecnologias adotadas.
A trajetória de Amorim em prefeituras com orientação neoliberal tem sido marcada pela subordinação às lógicas de mercado. Segundo funcionários públicos e sindicatos, sua gestão tem promovido a remoção de lideranças comprometidas com políticas de soberania digital e software livre. Funcionários que discordam dessa política são marginalizados.
A gestão atual do Serpro não tolera opiniões divergentes, e aqueles que a questionam correm o risco de perseguição e processos.
O blog Capital Digital relatou que Alexandre Amorim trouxe para o governo federal empresas do Paraná que já foram investigadas por corrupção na Prefeitura de Curitiba.
O Sindicato dos Trabalhadores em Processamento de Dados, Informática e Tecnologia da Informação de Pernambuco (SINDPD-PE) denunciou outras ações de Alexandre Amorim, incluindo tentativas de demissão de funcionários com mais de 70 anos e ameaças de demissão de todos os auxiliares da companhia, medidas que foram barradas por trabalhadores e sindicatos.
Em vez de se render às grandes empresas de tecnologia dos EUA, o Serpro deveria se inspirar no modelo do Uruguai, que investe em soberania digital.
O Uruguai possui um data center 100% público com software livre, construído e operado pela estatal de telecomunicações Antel. O data center é alimentado por energia renovável e possui infraestrutura sob controle nacional. O Uruguai também planeja construir dois novos centros voltados para inteligência artificial, sem a participação das grandes empresas de tecnologia.
O Serpro deveria investir em infraestrutura pública, software livre e autonomia estratégica, em vez de entregar o futuro digital do Brasil a corporações que respondem a leis estrangeiras e a interesses contrários aos do povo brasileiro.
A tese de doutorado de João Francisco Cassino demonstra como a “nuvem soberana” entrega o controle do cofre digital do Estado brasileiro a quem já tem acesso a ele. Os sistemas utilizados são fechados, não auditáveis e baseados em licenças temporárias, o que significa que o Brasil não é proprietário de nada.
Além disso, as “nuvens soberanas” no Brasil precisam se conectar com infraestruturas nos EUA, permitindo que empresas acessem, movam e copiem dados sob o pretexto de cumprir leis dos EUA, como a Cloud Act. Leis como a FISA e a CALEA permitem vigilância sem autorização judicial e exigem “portas dos fundos” em hardwares e softwares.
Essa situação é vendida como “transformação digital”, mas, na verdade, é uma entrega do futuro digital do país a quem tem interesses próprios.
No entanto, existe um caminho alternativo. Em 2004, o economista Paul Singer destacou dois caminhos para a humanidade: o modelo capitalista, baseado na competição e na propriedade privada, e o desenvolvimento solidário, fundado na cooperação e no acesso coletivo aos meios de produção, incluindo os meios digitais.
Singer destacou o software livre como uma experiência de economia solidária no campo do conhecimento, onde o saber se torna um bem comum, livre e compartilhado. Governos populares já utilizavam software livre como política pública de inclusão digital, soberania tecnológica e cidadania.
Hoje, retomar esse caminho é urgente. É preciso reconstruir uma política nacional de software livre, construir projetos de produção nacional de hardware, criar redes públicas de dados e IA e articular isso tudo com a economia solidária.
Enquanto as grandes empresas de tecnologia atuam como monarquias digitais, precarizando o trabalho e monopolizando a infraestrutura da comunicação, é preciso construir data centers com alternativas digitais verdadeiramente soberanas, com software livre, código aberto e governança comunitária ou pública.
A soberania digital não se compra, se constrói com tecnologia aberta, produção coletiva, nacional e estratégia pública.

