Lei do streaming: um risco para a produção independente?
A iminente aprovação, pelo Congresso Nacional, do Projeto de Lei 8.889/2017, conhecido como Lei do Streaming, reacende o debate sobre o futuro da indústria audiovisual brasileira. Diante de um setor que, segundo o Anuário Estatístico do Audiovisual Brasileiro 2024, injetou R$ 32,7 bilhões na economia nacional, a responsabilidade de qualquer nova legislação é inegável.
O Brasil possui um sistema de investimento público no audiovisual, estruturado em décadas de aprimoramento da política pública, tendo como principal ferramenta o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Este fundo financia a produção, distribuição e exibição de obras nacionais, sendo alimentado pela Condecine, uma contribuição incidente sobre a exploração comercial de obras audiovisuais.
O modelo brasileiro se destaca por sua interdependência circular: a Condecine recolhe recursos da própria cadeia audiovisual (TV, telecomunicações, publicidade, streaming) e os reinveste no setor, fortalecendo a produção independente e a diversidade de conteúdos. Essa dinâmica evita a criação de novos impostos, realimentando o ecossistema com a riqueza que ele mesmo gera.
O PL 8.889/2017 propõe a criação da Condecine-Streaming, com o objetivo de integrar o segmento de streaming ao ecossistema regulatório. No entanto, a proposta em votação altera o equilíbrio do modelo, permitindo abatimentos e investimentos diretos pelas plataformas, o que pode reduzir os repasses ao FSA e transferir o poder de decisão sobre recursos públicos para agentes privados.
A lei define uma alíquota de 4%, valor considerado baixo em comparação aos 12% recomendados pelo Conselho Superior de Cinema e os 6% negociados pelo Ministério da Cultura. Adicionalmente, permite que grande parte da aplicação dos recursos da contribuição seja gerenciada pelas próprias plataformas.
A proposta concentra recursos nas produtoras já integradas comercialmente às plataformas e abre um precedente ao permitir que empresas não independentes acessem recursos públicos para produção própria. Essa mudança representa uma inflexão no modelo de política audiovisual brasileira, reforçando o poder dos grandes players em detrimento da diversidade, regionalização e independência criativa.
O texto propõe que as plataformas recolham 4% de sua receita bruta no Brasil, com a seguinte repartição: 60% dedutíveis na contratação de conteúdos independentes; até 40% dos 60% aplicados em produção própria (para contribuintes qualificados como produtora brasileira); de 1% a 3% para formação e capacitação, e o restante para o FSA.
Entretanto, a definição de receita bruta exclui os tributos indiretos, o que pode reduzir em até 19% o valor total da contribuição. O controle da destinação de 60% dos recursos fica nas mãos das empresas, invertendo o princípio de governança do fomento audiovisual e transferindo a função regulatória do Estado para as plataformas privadas.
Os 60% de abatimento tendem a favorecer as grandes produtoras independentes que já possuem contratos com as plataformas, garantindo financiamento público para contratos privados entre conglomerados globais e produtoras nacionais. Apesar de injetar dinheiro no mercado, a medida destina pouco recurso ao FSA, o qual poderia beneficiar as produtoras médias, regionais ou emergentes.
Um ponto crítico é a autorização para que até 40% dos 60% de abatimento sejam aplicados em conteúdos próprios, produzidos pelo contribuinte, o que significa que grandes grupos de comunicação poderiam utilizar parte do tributo abatido para investir em suas próprias obras.
A medida representa um precedente inédito na política de fomento, permitindo o uso de recursos públicos em empresas não independentes e rompendo com o princípio de promover diversidade e corrigir assimetrias estruturais.
O texto também cria brechas para judicializações futuras, ao romper o princípio da isonomia entre contribuintes e distorcer o propósito original da CIDE, financiando o catálogo das plataformas com dinheiro público.
A aprovação do PL, em um momento de vácuo na política audiovisual do Poder Executivo, pode resultar em um texto enfraquecido e desequilibrado, com pouco investimento político para reconhecer o peso econômico e simbólico do audiovisual brasileiro. A falta de coordenação entre os órgãos competentes e a burocracia podem comprometer qualquer tentativa de reconstrução institucional.

